Por Therese Raphael – adaptação Dr. Miguel Nácul
O problema que mais chama a atenção, suprimentos básicos de EPI, é, em teoria, o mais fácil de resolver: basta produzir e enviar mais kits, embora exista desafios em levar o equipamento certo para o local certo. Embora esses esforços sejam bem-vindos, eles não atenuaram as preocupações de pelo menos um grupo: aqueles que realizam cirurgias. O impacto do COVID-19 em um cenário cirúrgico é muito relevante e contém peculiaridades alarmantes. Em verdade, alguns cirurgiões descrevem as salas cirúrgicas nesta situação como "laboratórios virais em um túnel de vento". O resultado serão longas listas de baixas entre os profissionais médicos.
Para proteger o paciente, a equipe cirúrgica e a si próprio, os cirurgiões utilizam avental impermeável, máscara cirúrgica e touca. Não é o traje completo para materiais perigosos ou atendimento em UTIs ou salas de emergência, mas parece bastante isolante. No entanto, esta vestimenta não é suficiente para manter o vírus fora. Os aerossóis podem deixar o vírus praticamente em qualquer lugar - em plástico, metal, papelão - e podem permanecer lá por vários dias. Apesar de ambiente extremamente limpo e com várias áreas estéreis, as salas de cirurgia não estão garantidas contra infecções. Especialmente considerando o uso de ventilador utilizado em anestesias gerais, se um paciente tiver o COVID-19, mesmo que não esteja apresentando sintomas, a combinação de eletrocirurgia, respingos de sangue e sistemas de ventilação pode produzir o “túnel de vento viral”.
Se em uma sala de cinema tivesse alguém com o COVID-19 nas 72 horas anteriores, o aerossol no ar poderia pousar em alguma superfície e lá permanecer por um tempo que eventualmente pode se estender por várias horas e até, potencialmente, dias. Proteger contra isso, mesmo com uma limpeza rigorosa, é quase impossível. A implicação, conforme alguns autores, é que muito em breve todas as nossas salas cirúrgicas poderão estar cobertas pelo COVID-19. E ao ligar um sistema de ventilação, disseminar o vírus por toda parte.Outro fator que dificulta tudo isso é que o COVID-19 é um vírus furtivo; pode ser transmitido mesmo por pessoas sem sintomas - e as máscaras faciais talvez não forneçam proteção suficiente. Não existe um protocolo hospitalar unificado para gerenciar o Coronavírus em ambientes cirúrgicos. Diferentes recomendações têm sido publicadas por sociedades importantes como o American College of Surgeons, SAGES e o Colégio Brasileiro de Cirurgiões. O próprio Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre – RS, também detalhou rotinas e cuidados, baseados em artigos científicos que expressam experiência de equipes na Ásia. No entanto, estas recomendações e rotinas podem não ser suficientes. Por exemplo, não há definição do que é um EPI completo. O que os chineses chamam de EPI completo é realmente uma proteção plástica leve de corpo inteiro com óculos e protetores faciais, o que significa que há muita pouca área de superfície do corpo que pode receber gotículas de aerossol. Na prática, provavelmente não haverá quantidade suficiente destas vestimentas para o centro cirúrgico.
Muitos cirurgiões relutam em falar, mas não gostam da evidência crescente de que estão sendo expostos a um ambiente de alto risco sem a proteção adequada. Cirurgiões tendem a se expor mais principalmente em situações emergenciais e esta imprudência pode cobrar caro nesta pandemia.
Por fim, em um mundo ideal de resposta a vírus, os hospitais testariam a equipe médica diariamente para que seu status de COVID-19 fosse claro e aqueles que fossem transmissores pudessem ser isolados. Testar pacientes assintomáticos com cirurgias agendadas também seria importante. Mas a disponibilidade de testes ainda é limitada, pois pacientes com sintomas são priorizados. Claro que existem os resultados “falsos negativos”, mas a verdade é que ninguém sabe realmente a real situação no cenário da cirurgia. Neste sentido, o modelo correto aqui é o protocolo adotado para o HIV: todos os pacientes, a menos que se prove o contrário, são potencialmente portadores do vírus e os cirurgiões tomam as precauções apropriadas sempre.
O exemplo italiano demonstra que se não protegermos os médicos, haverá menos médicos para o atendimento dos pacientes, o que é realmente triste, pois isto pode ser evitado através de testes e proteção adequada.